O conceito de saúde tem andado sempre de mãos dadas com o conceito de doença e sempre mediado com o de cultura. Todos têm tido um desenvolvimento histórico que tem acompanhado a evolução do conhecimento humano e que se mantém ainda nos dias de hoje que são, marcadamente, tecnológicos.
Nas sociedades tradicionais verificava-se uma forte relação entre saúde e crença religiosa. Os doentes, vistos como pecadores, pagavam por práticas profanas através do sofrimento que os conduziria à salvação. Não existia uma prática da medicina voltada para a cura, mas sim como um avanço da religião e na busca de uma explicação metafísica.
Durante a Idade Média, o avanço das grandes epidemias conduziu o conceito de doença para um plano mais colectivo, tornando-o num fenómeno de massas. As inúmeras doenças da época (cólera, peste, varíola, etc.) e a própria fome conduziam inevitavelmente à morte que, assim, se tornou num acontecimento frequente.
No séc. XVIII, por via do desaparecimento das epidemias (fruto da luta contra o contágio) e com as melhorias das condições sanitárias ao nível das grandes cidades, surgem novas doenças que afectam os mais velhos conduzindo à individualização da experiência da doença (Herzlich, in Silva, Luísa Ferreira, 2004, pag.19). Esta alteração teve consequências no crescimento demográfico, através da diminuição da mortalidade infantil e do aumento da esperança de vida.
Simultaneamente, os progressos da ciência médica conduzem, nesta época, à medicina científica. A doença como fenómeno colectivo nunca deu ao doente dignidade individual. Só a partir do séc. XIX, com a atenção que se deu à tuberculose que não matava de forma colectiva mas sim lenta e individualmente, é que o doente ganha um papel especifico. A doença de uma pessoa, enquanto realidade orgânica, diz respeito só a ela, não significa ameaça para os que a rodeiam (Silva, Luísa Ferreira, 2004, pág. 21). A doença socializa-se na sua relação com o trabalho. Com Parsons surge a noção de “papel do doente” – direitos e obrigações para com a sociedade. Com o interaccionismo simbólico passa a haver duas percepções de doença: a biológica e a social, e é neste relativismo que o papel do doente se alarga à sua participação activa na escolha das decisões quanto ao seu percurso de vida na doença.
A modernidade trouxe também um desequilíbrio que impôs uma intervenção política ao nível dos Estados e comunidades locais que conduziram, em Portugal, a uma descentralização do serviço nacional de saúde, que, embora gratuito e fazendo parte de uma filosofia de prestação de cuidados primários assente na integração e planeamento a nível local das acções de saúde básica (Hespanha, 1987, pág.195), trouxe problemas de desajustamento sobretudo em serviços periféricos e em zonas rurais. Estas intervenções na área da saúde têm sido direccionadas mais por preocupações orçamentais, taxando os actos médicos e limitando a autonomia médica, situações que têm levado à exclusão social, a qual é mais agravada num cenário de pobreza, contextualizada na indisponibilidade de recursos materiais e económicos.
Contudo só a pobreza não justifica as dificuldades de acesso aos cuidados de saúde. Do lado médico, a inoperância e a burocracia dos serviços médicos têm feito parte das queixas da opinião pública. A elevada capitação de doentes por médico, o excessivo recurso aos meios auxiliares de diagnóstico e o sobreconsumo de medicamentos (Hespanha), nomeadamente em certos perfis de fármacos, são outros dos desajustamentos de um serviço nacional de saúde que teima em perfilar pelo sistema bio-médico. Do lado do doente, a falta de conhecimento por parte dos profissionais de saúde dos saberes populares e das representações sociais da colectividade onde estão inseridos, questão esta que deveria obter uma exploração mais formativa por parte destes, complementando o estudo empírico do conhecimento médico, e que é crítica no estabelecimento de uma relação de confiança e de aproximação deste às populações.
Claro é que, a detecção e interpretação dos sinais de doença são diferenciados nos diversos grupos de população e condicionados pelas suas determinantes sociais e culturais. As noções de saúde e de doença, não são iguais na cidade e no campo. Se por um lado temos uma população urbana, homogénea, que está mais familiarizada com os aspectos somáticos e cujo discurso médico é facilmente entendido, por outro existe uma população rural e envelhecida, heterogénea, cujas representações médicas estão assentes em experiências de vida. Se na população urbana as queixas são enquadráveis dentro de um espectro médico decifrável, na população rural, a maioria, são mal definidas e relatadas num vocabulário popular que, não sendo reconhecidos pela medicina científica, são definidas como queixas assintomáticas. Segundo Maria José Hespanha (1987) verificam-se estes casos com frequências elevadas nos grupos de maior instabilidade económico-social.
Reconhece-se assim que são diferentes as percepções dadas aos “sinais” de doença, ao sentido do corpo, influenciadas por factores culturais, pelas condições de vida, pelo clima, pelas actividades económicas, etc. (Berta Nunes, 1987, pág.233).
Diferentes são também as representações da doença. Nas zonas rurais valoriza-se a resistência à dor física e assiste-se a uma reprovação social do estar doente, muitas vezes associado ao sentimento de “vergonha” numa relação directa com a aptidão para o trabalho físico, enquanto nas zonas urbanas, onde predomina o trabalho intelectual a procura do médico, para além de denunciar uma preocupação com o corpo tem uma conotação socialmente valorativa.
Estes diferentes quadros de representações influenciam por sua vez o processo de retenção e interpretação da informação médica geral, que chega à população através de diversas fontes: o médico; outros profissionais do serviço de saúde; familiares; amigos; comunicação social, etc., e que faz com que o doente, muitas vezes desvalorizando o papel do médico, construa o seu quadro de referência.
È neste quadro que surgem os agentes de uma medicina popular tradicional e/ou alternativas, que se têm multiplicado e mantido à margem da medicina cientifica e que, ao contrário desta, engloba os significados contidos nos conhecimentos populares utilizando por vezes informação e procedimentos da própria medicina cientifica.
Práticas que têm de ser entendidas no quadro cultural de que fazem parte e não vistas com desconfiança e preconceito por parte dos clínicos, até porque, algumas das razões porque as populações recorrem a estes “sistemas de medicina paralela ou alternativa” podem ser atribuídos à falta de resposta e de equipamentos dos serviços primários de saúde e pelas experiências negativas dos cuidados hospitalares, reforçadas muitas vezes pelo saber-fazer das pessoas do povo e de uma socialização com raízes tradicionais. As histórias de diversos sucessos (Berta Nunes, 1984) comprovam que a cura não se encontra unicamente nos consultórios médicos ou nos hospitais e que os médicos não são a única fonte de conhecimento sobre a saúde e a doença.
Podemos concluir que a doença é uma construção social e que por isso os conceitos e práticas de saúde são influenciados por diversos factores que variam consoante a zona geográfica e que criam desigualdades e assimetrias nos serviços de saúde.
Ainda numa perspectiva de aplicação de recursos, parece poder-se afirmar que nas zonas urbanas vive-se uma melhor saúde na medida em que existem melhores recursos.
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