A revista do Expresso de 20/01/2023 traz um artigo (pág.26), assinado por Henrique Raposo, com o título “A cura da pobreza”. No subtítulo o autor reforça a ideia de “cura” utilizando argumentos como “neurociência da pobreza”; “doenças mentais”; “comportamento à pobre” ou ainda “tratamento”. São, na verdade, argumentos provocatórios para um fenómeno bastante estudado, que se situa na área das ciências sociais e no âmbito dos Direitos Humanos e que, por isso, dizem respeito a toda a sociedade.
A pobreza não é um fenómeno individual e conjuntural. É social e estrutural. A sua
origem remonta à revolução industrial e está assente nas desigualdades sociais, na ineficiente distribuição do rendimento e numa construção e consolidação ideológica
que as sociedades ocidentais criaram, para a explicar, em desfavor dos mais
desfavorecidos. Apesar de a partir dos anos 80 começar a haver um forte
movimento de deslocamento da pobreza material para a pobreza multidimensional, com base em estudos empíricos nas áreas da sociologia e psicologia, mantém-se um aproveitamento das novas ciências, nomeadamente a neurociência,
para justificar estereótipos classistas, e perpetuar mitos de senso comum do
Séc. XIX. É o caso do artigo que atribui a pobreza a uma doença mental.
O autor começa por descrever a “criança pobre” como um
individuo que sofre de stress crónico “porque a sua rua é perigosa, porque a
sua casa é péssima……O seu espírito nunca sossega”. No meu prédio vive uma
família com dois filhos que, antes da pandemia, vivia uma vida desafogada.
Ambos ficaram desempregados. O resto da estória o cérebro, daqueles que
não têm doença mental, encarrega-se de a contar. Não considero que vivam
numa rua perigosa, sei que têm uma casa com boas condições, mas ……. vivem
permanentemente desassossegados pelo futuro. É normal. E, na verdade, o stress
crónico, afecta também pessoas materialmente favorecidas. E, também, os filhos
destes. O que quero dizer com este exemplo é que a pobreza não afeta todos por
igual nem as consequências são as mesmas para todos os pobres. Hoje, mais do que em
qualquer outra altura, face às incertezas e riscos, qualquer pessoa pode cair na pobreza. Quando o autor fala na “criança pobre” está a estigmatizar um grupo.
Está a enviesar o discurso para a guetização. Na ruas, nos prédios, nas
escolas, na sociedade. O que existe são crianças que vivem em situação desfavorecida e vulnerável relativamente a outros. Que entram e saem da
condição de pobreza (uns conseguem mais depressa, outros mais rápido, outros,
infelizmente, não conseguem) e que começaram a experienciar essa situação por causas
diversas, em locais diversos e em contextos diversos.
O autor recorre depois à epigenética para sustentar uma série de movimentos químicos que justificam a diferença entre os cérebros dos pobres e os dos outros. Utiliza “neurociência da pobreza” uma outra imagem de segregação social. Há ali uma palavra que falta (não sei se propositadamente) que é plasticidade. O nome que os cientistas atribuíram à capacidade do cérebro para mudar a sua estrutura e o seu funcionamento como reacção ao meio envolvente. Isto acontece ao longo de toda a nossa vida e a todas as pessoas. É neste enquadramento que entra a epigenética, com os neurotransmissores e neuromodeladores (entre outros), que justificam a determinação que o meio envolvente tem no desenvolvimento humano. Por exemplo, uma explicação dos abusos sexuais da igreja pode ser defendida com base na epigenética. Ou, outro exemplo, a epigenética também pode explicar porque razão Elon Musk despediu mais de 6.000 colaboradores quando comprou o twitter.
A estrutura e o funcionamento cerebral
de um aborígene da Austrália é diferente de um europeu. É por isso também que
os cérebros dos cegos têm um sentido auditivo mais desenvolvido. Mas o cérebro humano é um só. Obedece ao mesmo plano de construção em todos nós quando somos concebidos. O autor também refer a parte primária e antiga do cérebro desconhecendo que o modelo triuno (sobrevivência,
emocional e racional) é um dos mais bem-sucedidos
e generalizados erros de toda a ciência.
Aproveitando o bombardeamento químico e biológico cerebral (faltou a parte eléctrica), o autor utiliza a manipulação para atribuir à pobreza doenças como a obesidade, a diabetes e a
“irracionalidade” de comprar raspadinhas ou tomar o pequeno-almoço no café, naquilo
a que se pode chamar de “crenças populares” normalmente utilizadas por
discursos nacionalistas que se podem transformar num instrumento político
poderoso. Defende a intergeracionalidade da pobreza com base no ADN que passa
de pais para filhos quando se sabe que, no desenvolvimento humano, a parte
genética de um individuo conta muito menos quando comparada com a influência da
realidade social.
Aquilo que se sabe hoje, com toda a certeza, é que a
exposição à pobreza prejudica o normal desenvolvimento do cérebro. E quanto
mais persistente pior. Mas o mesmo acontece com todas as pessoas que estão expostas ao stress. Apesar da ciência ainda não conseguir explicar de que forma
isso acontece, sabe-se que, no caso da pobreza, está ligada a
um menor desempenho escolar e a menos anos de escolarização. Aliás, dados
do ICOR 2021 evidenciam que, quanto mais avançada é a escolaridade dos pais,
menor é a percentagem de crianças que se encontram em privação material e
social e melhor é o seu rendimento escolar. Nas palavras do autor o
problema da baixa escolaridade das crianças pobres é que “a escola está a impor
um software que não corre no seu hardware neurológico, que é preciso consertar”.
Sabendo que, em 2021,Portugal foi um dos últimos países da EU com níveis de escolaridade mais baixa,
haverá por aqui muito software a necessitar de conserto.
Numa coisa concordamos, a pobreza é um fenómeno que prejudica a tomada de decisão levando os indivíduos a escolhas erradas. E isso é muito bem explicado pela economia comportamental. Mas não se trata a pobreza. Combate-se a pobreza. Viver na pobreza é viver com privações que impedem os indivíduos de levarem a vida que ambicionam. De terem acesso a serviços básicos, mas também a direitos sociais garantidos e a oportunidades para poder levar a vida que anseiam, privando-os de fazer escolhas e exercer direitos de cidadania. É um problema de exercício de liberdades. Se as privações das necessidades básicas não forem removidas, nomeadamente por insuficiência de rendimentos, os indivíduos podem ficar retidos na armadilha da pobreza e condicionados nas suas escolhas. Segundo dados do INE, publicados em Janeiro último, 19,4% da população estava em risco de pobreza ou exclusão social após transferências sociais. Se não se considerarem as transferências sociais esta percentagem sobe acima dos 40%. Há até cientistas sociais que defendam ser maior se considerarmos indicadores de pobreza subjetiva. É muita gente com problemas de saúde mental para ser tratada.
O combate à pobreza é um esforço que tem de partir de toda a sociedade e ir muito mais além do que o saco de alimentos, tão necessário, que compramos. Acima de tudo é um problema de inclusão, de igualdade de oportunidades. Sabe-se, com toda a certeza, que as soluções de combate à pobreza são mais eficazes quando os pobres são ouvidos e participam nelas. É por isso que organismos internacionais como a ONU e o Banco Mundial têm vindo a apelar à inovação para novos programas e iniciativas a nível comunitário e na participação cidadã como formas mais eficazes à erradicação da pobreza. Este é até o ponto primeiro dos ODS's.
Considerando o conhecimento que a psicologia comportamental e as ciências sociais tem aportado a este fenómeno, trazer a pobreza para o foro das doenças mentais, sabendo à partida que os doentes mentais são pessoas socialmente estigmatizadas, é uma narrativa perigosa que esconde uma reserva mental, que se fosse tomada a serio, em determinada altura, substituiríamos o comprimido vermelho da pobreza, por um azul para os negros, um branco para os LGBT's ou um verde para os judeus.
Notas:
A propósito de saúde e doença mental aconselha-se ouvir o podcast de jornalismo de investigação do Fumaça, "Desassossego"
A propósito da pobreza aconselha-se a ler Amartyan Sen e Deepa Narayan
A propósito do cérebro aconselha-se a ler o último livro da Lisa Feldman Barrett "7 lições e meia sobre o cérebro"
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